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Discurso. Vigésimo nono período de sessões da Comissão

9 de maio de 2002|Discurso

Discurso do José Antonio Ocampo, Secretário Executivo da CEPAL

PALAVRAS DO SECRETÁRIO EXECUTIVO DA CEPAL,
DR. JOSÉ ANTONIO OCAMPO, NA INAUGURAÇÃO DO
VIGÉSIMO NONO PERÍODO DE SESSÕES DA COMISSÃO

Brasil, 9 de maio de 2002

Quero agradecer, senhor Presidente, o convite que recebemos para realizar este vigésimo nono período de sessões da CEPAL no Brasil. A pujança desta grande nação e seu arraigado sentido de identidade são elementos que todos os latino-americanos e caribenhos admiram. A CEPAL deve muito à riqueza da intelectualidade brasileira, ao professor Celso Furtado, a Maria da Conceição Tavares, a Fernando Henrique Cardoso e a tantos outros que deixaram também seu selo no pensamento social latino-americano. Além disso, senhor Presidente, o documento "Globalização e desenvolvimento", que hoje apresentamos, é, de alguma maneira, uma resposta a um desafio que o senhor nos impôs desde sua primeira visita à CEPAL como Presidente do Brasil: o de refletir com um espírito independente sobre os desafios que impõe à nossa região a etapa atual de integração global.

A globalização econômica tem, como sabemos, raízes históricas profundas. Sua fase mais recente apresenta características comuns com etapas prévias, mas também mostra elementos diferentes: o acesso maciço à informação em tempo real; o planejamento global da produção das empresas transnacionais; a extensão do livre comércio, ainda limitado por múltiplas formas de protecionismo no mundo industrializado; a contraditória combinação de uma elevada mobilidade de capitais e fortes restrições à migração da mão-de-obra; a evidência de uma crescente vulnerabilidade e interdependência ambiental; e uma inédita tendência à homogeneização institucional.

Em todo caso, a globalização é um fenômeno multidimensional, que não obedece somente a um determinismo econômico. Uma de suas dimensões, que denominamos "globalização dos valores", é a extensão gradual de princípios éticos comuns, entre os quais se destacam as declarações de direitos humanos e os princípios consagrados nas cúpulas das Nações Unidas, incluída a Cúpula do Milênio. Estes processos obedecem, além disso, a uma longa trajetória de lutas da sociedade civil internacional pelos direitos humanos, pela equidade social, pela igualdade das mulheres, pela proteção do meio ambiente e, mais recentemente pela “globalização da solidariedade” e o "direito a ser diferente".

O maior paradoxo que encerra este processo é a ausência de uma internacionalização da política. O contraste entre problemas mundiais e processos políticos que continuam sendo quase exclusivamente nacionais se traduz em um déficit de governabilidade global, que aumentou, sem dúvida, as tensões entre as oportunidades e riscos que implica a globalização. Frente a esta realidade, a única resposta razoável é uma agenda positiva, já que a história demonstra que a mera resistência diante de processos tão profundos é sempre, no final, derrotada. O propósito de nossa agenda é contribuir à construção de uma melhor institucionalidade que permita "conseguir que a mundialização se converta em uma força positiva para todos os habitantes do mundo", como expressa a Declaração do Milênio das Nações Unidas.

Para isso assinalamos que é necessário avançar na consecução de três objetivos:

  • garantir um fornecimento adequado de bens públicos ou, melhor dito, de serviços públicos globais;
  • superar progressivamente as marcadas assimetrias que caracterizam a ordem econômica global; e
  • construir gradualmente uma agenda social internacional baseada nos direitos.

 

A consecução destes objetivos deve apoiar-se na complementariedade virtuosa entre desenvolvimento institucional global, regional e nacional, quer dizer, numa rede de instituições mais que nuns poucos organismos de alcance mundial. Um esquema desta natureza é mais eficiente e equilibrado em termos de relações de poder. Os esquemas institucionais devem, além disso, respeitar a diversidade. Este princípio é o único coerente com o fomento da democracia no âmbito mundial, que só adquire sentido quando os processos nacionais de representação e participação influem na determinação das estratégias de desenvolvimento e exercem uma mediação eficaz das tensões próprias do processo de globalização. A ordem internacional deve garantir, por último, uma participação eqüitativa dos países em desenvolvimento e regras apropriadas de governabilidade.

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Toda estratégia nacional de desenvolvimento deve basear-se em pactos sociais sólidos e democráticos, sistemas legais adequados e burocracias estatais imparciais e transparentes. Todavia, estes elementos institucionais, que, justificadamente, foram objeto de considerável atenção nos últimos anos, não explicam os impulsos ao crescimento nem determinam a melhor distribuição de seus frutos. Por isso, é necessário complementá-los com ações concretas em quatro frentes, em nenhuma das quais existem modelos únicos de validez universal.

O primeiro é o desenho de estratégias macroeconômicas que, com base nos avanços obtidos no controle da inflação, contribuam para reduzir a intensidade dos ciclos econômicos. O segundo é o desenvolvimento de estratégias de transformação produtiva, já que este processo não é o resultado automático de um bom desempenho macroeconômico. Estas estratégias devem orientar-se a criar competitividade sistêmica, mediante o fomento explícito dos sistemas de inovação, de estratégias de diversificação de exportações e de "políticas de encadeamentos" entre as atividades bem-sucedidas nos mercados internacionais e o resto da produção nacional, de apoio à formação de conglomerados produtivos de caráter local e de desenvolvimento de uma infra-estrutura de qualidade.

O terceiro componente é o desenho de instrumentos mais eficazes e preventivos que facilitem o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade ambiental. O quarto é uma política social ativa em matéria de educação, emprego e proteção social. Os desafios nestas áreas são superar velhos atrasos e abordar, ao mesmo tempo, os novos riscos sociais associados à vulnerabilidade do emprego e da renda e as crescentes demandas da sociedade do conhecimento.

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Na agenda propriamente global, a provisão de serviços públicos abrange uma ampla gama de temas, relacionados com a interdependência crescente que caracteriza o mundo atual: a defesa dos direitos humanos, a paz e a segurança, e a luta contra as pandemias e a delinqüência internacional, entre outros. Neste documento abordamos especificamente somente dois destes temas: a estabilidade macroeconômica internacional e o desenvolvimento sustentável. Neste último caso, insistimos no desenvolvimento de novos instrumentos, em particular mercados de serviços ambientais globais que permitam avaliá-los economicamente, com duas prioridades claras para a região: as convenções sobre mudança climática e sobre biodiversidade.

A correção das assimetrias globais exige superar o acesso segmentado e volátil dos países em desenvolvimento aos mercados financeiros internacionais e abrir espaços para que possam adotar políticas macroeconômicas anticíclicas. Isto exige uma estratégia integral que aponte não só ao fortalecimento de mecanismos de supervisão macroeconômica e ao desenvolvimento de códigos e padrões reguladores, mas à autonomia dos países em desenvolvimento para regular os capitais internacionais por motivos macroeconômicos, a transformação gradual do Fundo Monetário Internacional num quase-credor de última instância, mediante o uso ativo dos direitos especiais de saque, o desenvolvimento de esquemas multilaterais para enfrentar problemas de insolvência, o fortalecimento dos bancos de desenvolvimento, o aprofundamento dos sistemas financeiros nos países em desenvolvimento e um novo acordo internacional sobre o alcance da condicionalidade. A instrumentação do recente "Consenso de Monterrey" é o ponto de partida deste esforço. A forma claramente inadequada em que a comunidade internacional respondeu à crise da Argentina é uma demonstração do muito que falta para avançar nesta frente.

O segundo campo de ação se refere à superação das assimetrias produtivas e tecnológicas, mediante a abertura dos mercados internacionais de bens e serviços aos países em desenvolvimento e a participação crescente desses nos ramos com maior conteúdo tecnológico e na criação de conhecimento. A agenda que a Organização Mundial do Comércio deve abordar a partir da Conferência de Doha é clara: maior liberação do comércio agrícola, redução dos subsídios à produção e eliminação dos subsídios à exportação; progressiva liberação dos mercados de bens e serviços com maior conteúdo de mão-de-obra menos qualificada e redução das tarifas máximas, e aplicação de uma maior disciplina no uso das medidas de contingência comercial, especialmente do estatuto antidumping. A Área de Livre Comércio das Américas pode cumprir uma função neste processo, mas, para contribuir à convergência dos níveis de desenvolvimento dos países do hemisfério, deve estar acompanhada de uma maior mobilidade internacional da mão-de-obra e de fundos de coesão ou de integração, como assinalaram vários Chefes de Estado na Cúpula de Quebec. Em um e outro caso, é necessário, além disso, que o ordenamento internacional acautele as margens de autonomia dos países em desenvolvimento para adotar políticas de competitividade e de diversificação produtiva.

Por outro lado, assinalamos que acordos multilaterais de investimento e de concorrência bem concebidos podem desempenhar um papel positivo, mas não é evidente que a OMC constitua o melhor cenário para negociá-los e implantá-los, como possivelmente tampouco o seja no âmbito da propriedade intelectual. Nesta última matéria, consideramos, além disso, que a decisão sobre saúde pública adotada em Doha, sob a liderança do Brasil, consagrou um importante princípio: que o caráter de bem público do conhecimento deve prevalecer, em certas circunstâncias, sobre o caráter de bem privado que lhe outorga a proteção da propriedade intelectual. É imperativo que a comunidade internacional aborde com maior decisão a definição do alcance deste princípio.

A grande assimetria entre a mobilidade dos diversos fatores de produção prejudica os menos móveis, em particular a mão-de-obra pouco qualificada; acentua as desigualdades de renda segundo a qualificação, e dá origem ao tráfico de migrantes. Isto explica a importância de incorporar plenamente este tema na agenda internacional, mediante um acordo global sobre políticas migratórias. Um primeiro passo seria a ratificação da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de suas Famílias, assim como a inclusão do tema na agenda hemisférica, nos acordos com a União Européia e em nossos próprios processos de integração regional.

A construção de uma agenda social internacional supõe, em nossa opinião, o reconhecimento de todo membro da sociedade global como cidadão e, em tal caráter, depositário de direitos. A exigibilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, assim como os princípios consagrados em diversas cúpulas das Nações Unidas, deve evoluir, portanto, para uma exigibilidade política mais clara, não só no âmbito mundial, mas também em foros nacionais representativos, nos quais se examine o cumprimento dos compromissos assumidos internacionalmente. Este processo deve ser apoiado explicitamente pela cooperação internacional, no âmbito dos planos de luta contra a pobreza, que devem ser concebidos como consubstanciais à garantia dos direitos.

Senhor Presidente, senhoras e senhores ministros e delegados:

Queria deixar para o final duas reflexões. A primeira se refere à importância crítica do espaço regional para uma ordem internacional mais equilibrada e uma participação adequada dos países em desenvolvimento nesta ordem. A América Latina e

  • o Caribe têm uma ampla tradição neste campo, mas também ambivalências, que se refletiram recentemente na perda do impulso dos processos de integração. A renovação do compromisso político com a integração regional é, por isso, um imperativo do momento, assim como a redefinição da agenda correspondente para cobrir um conjunto mais amplo de temas: a coordenação macroeconômica e o fortalecimento das instituições financeiras regionais e sub-regionais; a harmonização dos sistemas reguladores e das políticas de concorrência; a integração física; o uso sustentável dos ecossistemas comuns;
  • o fomento dos intercâmbios educativos, culturais e científicos; as políticas de proteção social dos migrantes, e a abertura de espaços de diálogo político. Para utilizar uma expressão que a CEPAL cunhou há alguns anos, o “regionalismo aberto” é inerente à globalização.

 

A reflexão final se refere ao enfoque do reordenamento global. Neste sentido, o documento que apresentamos contrasta dois conceitos que se empregaram amplamente nos debates recentes: o de "nivelação do campo de jogo", que orientou o ordenamento econômico mundial, e o de "responsabilidades comuns mas diferenciadas", consagrado na Cúpula da Terra (Rio de Janeiro, 1992). Em um mundo tão desigual como o atual, o primeiro destes princípios pode reproduzir, e inclusive ampliar, as assimetrias e desigualdades da ordem global. Por isso, destacamos a clara superioridade do segundo, não em vão consagrado neste lindo pedaço da América Latina, no qual tanto se defendem os interesses dos povos da região e que hoje nos acolhe novamente.